OS TERENA E O SPI
Nas décadas de 1910 e 1920, dois fatos significativos marcariam a história Terena: a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (NOB), esta última responsável direto pelo aumento da população não-indígena da região sulmatogrossense em cinco vezes ao longo de duas décadas.
O SPI instalaria seus postos na década de 1920, com o objetivo de levar aos Terena os objetivos da "proteção fraternal" preconizada por Rondon – o quê, ao menos nos primeiros anos, foi de fato tentado. Mas logo essa "proteção", que deveria ser de direitos, foi sendo gradualmente transformada em imposição ideológica, culminando na perda do que ainda restava da autonomia política dos Terena.
O "encarregado do posto", em pouco tempo, passaria a interferir em praticamente todos os aspectos da vida social Terena: da mediação de conflitos internos entre famílias à lavratura – e guarda dos registros – das ocorrências civis (nascimento, casamento e óbitos) até a gestão dos contratos de trabalho e estabelecimento de uma "guarda indígena" para a manutençao da "ordem": em cada detalhe e momento, ficava marcado que os Terena, ali, viviam por concessão. Como veremos adiante, no caso de Buriti, um chefe do posto – na década de 1920 – foi o responsável direto pela "autorização" para que um fazendeiro vizinho se apropriasse de uma gleba de terras dos índios, contribuindo ainda para a expulsão da aldeia ali estabelecida.
Agente subalterno local de um sistema verdadeiramente colonial de poder, este funcionário passaria a decidir o futuro do povo Terena. E esse futuro, agora "orientado legitimamente" por um purutuyé, se direcionaria a marcar todas as reservas Terena como reservas de mão-de-obra para as empresas agropecuárias da região – e ele, o gerente deste estoque. Na história oral dos Terena, são poucos os funcionários do SPI (ou da Funai, posteriormente) lembrados por tentar realizar uma gestão que privilegiasse o trabalho interno.
Lugar de uma estrutura de poder colonial, o "posto" se impunha para imobilizar a força de trabalho interna com vistas a torná-la disponível externamente. De fato, já nos anos 1950 os dados colhidos por Cardoso de Oliveira em Cachoeirinha impressionavam: dos 127 grupos domésticos que constituíam a aldeia em 1957, apenas 19 (17%) viviam exclusivamente da agricultura interna e do artesanato, enquanto 46% viviam exclusivamente do trabalho externo e outros 37% combinavam o trabalho em suas roças com o trabalho esporádico externo. A população na época era de cerca 900 pessoas (Cardoso de Oliveira, 1968).
Esses números não se alteraram nos anos seguintes; com a implantação de usinas de açúcar e álcool na região, no final dos anos 70, os números, em termos absolutos, com certeza aumentaram – assim como a população indígena residente nas "reservas" Terena, que ultrapassaria os dez mil em meados da década de 1980.
O fenômeno da urbanização de indivíduos Terena nos centros regionais (sobretudo Campo Grande e, em menor medida, Aquidauana e Dourados), crescente a partir do final dos anos 50, estaria diretamente ligado à superpopulação das "reservas" e pouca perspectiva de futuro que apresentavam (Cardoso de Oliveira, 1968). Em 1960, este autor registrou 418 indivíduos Terena morando em Campo Grande; hoje certamente esse número passa dos 2 mil indivíduos – grande parte mantendo ainda vínculos com as suas aldeias de origem.
A maioria desses migrantes saiu da "reserva" de Taunay/Ipegue e sobrevive como prestadores de serviços (empregados domésticos, fornecedores de mão-de-obra para serviços gerais, donos de pequeno comércio, funcionários públicos ou da antiga NOB etc.). As razões alegadas pela primeira geração de migrantes urbanos para deixarem as reservas foram os conflitos internos (por diferenças sobretudo religiosas, quando da chegada dos missionários protestantes às duas reservas citadas). Comparativamente às outras reservas, são poucos os Terena urbanizados egressos de Cachoeirinha (os quais ainda mantêm laços permanentes com suas famílias de origem na reserva).
Podemos inferir das análises de Cardoso de Oliveira (1968 e 1976) que as condições adversas que foram impostas aos Terena pela sociedade regional dominante, nas quatro décadas imediatas ao fim da guerra do Paraguai, foram sendo, naquele período de tempo, positivadas sociologicamente pelos Terena. Assim, a situação de confinamento na Reserva, ao mesmo tempo em que acarretou a perda da autonomia política das aldeias – dado que submeteu os índios à dependência política do chefe branco do posto do SPI/Funai – foi transformada pelos Terena na base territorial necessária para a atualização e manutenção do ethos tribal; a sua integração à estrutura econômica compensou de certa forma a perda da auto-suficiência econômica; e, finalmente, a urbanização crescente de parte de sua população foi a resposta encontrada pelos Terena às limitações políticas, sociais e econômicas, reinantes na situação de Reserva. Portanto, poderíamos compreender as novas pautas sociais engendradas pelos Terena “modernos” como derivadas da estratégia de um povo na busca de novos espaços para o exercício da sua sobrevivência, espaços estes onde a pressão para a negação da identidade indígena fosse minimizada.
As reservas indígenas Terena, consolidadas a partir da década de 1920, serviriam de ponto de apoio vital para o reagrupamento das famílias dispersas pela guerra e que ainda se encontravam sob a servidão nos barracões das fazendas. Passaram a representar, para os Terena, não só o espaço necessário para a reafirmação do ethos tribal, mas também de uma certa liberdade. Para os moradores das reservas, o trabalho externo voltaria a ganhar sua característica de trabalho facultativo, readquirindo a liberdade de escolher o tipo de serviço e até o patrão. Esse período de relativa liberdade, ao que parece, duraria pouco tempo, exatamente até o SPI alterar sua política nas reservas.
Havia a necessidade da imposição dos limites das Reservas porque, na verdade, os Terena não os respeitavam, isto é, continuaram usando e ocupando as áreas vizinhas para as suas necessidades, caçando, pescando e coletando suas ervas medicinais ou mel, sempre e quando lhes aprouvesse. E é somente a partir de 1960 que os Terena começariam a ser perseguidos e reprimidos, pelos fazendeiros e pelos encarregados do SPI, nessas suas expedições. E mesmo depois, quando se configurou uma situação de verdadeira clandestinidade, jamais interromperam suas incursões.